Na minha viagem ao passado , hoje vou ao ano de 1960. Prá mim foi outro dia e nem quero fazer conta do tempo que faz. A Usina Trapiche é um lugar que o tempo e a distancia não conseguem afastar de mim. Posso fechar os olhos e ver a nossa casa, nosso lar de verdade, com seu portão verde, seu jardim cheio de roseiras, petúnias e samambaias viçosas na varanda e o telhado cheio de matinhos completando o pitoresco cartão postal.
Muita coisa aconteceu ali e quase tudo me vem à memória , como em cascata, despejando de uma vez as minhas lembranças e me dificultando selecionar o que quero contar, preocupada em não misturar as bolas. A minha ansiedade em transmitir tudo é tão grande, que tenho que contê-la e me ater a uma coisa de cada vez.
Estávamos no começo do ano 60 e tudo estava indo muito bem. Eduardo e Luiza haviam feito exames para bolsa escolar e de admissão ao ginásio, ambos passando com ótimas classificações e como era de praxe, todos estávamos orgulhosos com o desempenho dos dois que iriam para colégios internos no Recife. Eduardo iria para o colégio Salesiano e Luíza tomaria o meu lugar no Instituto Maria Auxiliadora. Eu, como já era uma moça muito ajuizada, continuaria no mesmo colégio, só que externa e morando na casa de tia Mana. Estava tudo muito organizado para o começo do ano letivo e por conta das mudanças, não fomos passar férias na praia, como de costume.
Luíza era uma menina muito sapeca e magrinha , com os cabelos cheios de cachos, e estava encantada com a idéia de ir para o colégio. Mamãe, a essa altura já havia preparado seu enxoval, o que não foi muito difícil porque até o número 52 era o mesmo meu , o que facilitava as coisas.
Um dia a nossa caçula apareceu doente, com muita dor na barriga , com febre e vômito. A coisa foi se agravando e começamos a ficar preocupados. Papai chamou Seu Cecílio o farmacêutico, que depois de examiná-la disse que seu mal era “ Impaludismo”, o mesmo que malária. Passou remédio prá dor e prá febre e mandou que colocássemos bolsa de água quente na barriga. Eu, que nessas alturas , já era um pouquinho esclarecida, não deixei colocar a bolsa quente porque achava que ela estava com apendicite. A pobrezinha passou a noite sofrendo e ninguém dormiu. No dia seguinte, era uma Quarta Feira e portanto dia do médico Dr. Jarbas dar consulta no posto de saúde da usina. Ele morava em uma cidade próxima e ia lá só duas vezes por semana. Muito bem, o médico foi até a nossa casa e seu diagnóstico foi rápido e preciso : Apendicite Aguda. Tem que levar urgente para o hospital em Recife ! Mamãe desmontou e começou a chorar sem saber o que fazer. Foi um desespero total!
Nessa época, Carlos já estava trabalhando na usina e tomou a frente de tudo. Pediu o avião , mas este não estava na usina. Conseguiu uma caminhonete fechada e a nossa preocupação era se Luiza agüentaria a viagem . Pusemos um colchão no chão do carro e fomos mamãe , Murilo e eu prá Recife. Murilo e eu teríamos que resolver tudo porque mamãe não sabia o que fazer. A viagem foi um suplício. Eu e Murilo fomos atrás com ela colocando gelo na sua barriga e como a estrada era de terra, cada sopapo era um grito de dor. Graças a Deus não tivemos nenhum contratempo durante o percurso que parecia não ter fim. Chegamos no hospital.
O Hospital era o Barão de Lucena, um dos melhores da época, muito moderno e bem equipado. Era o hospital dos usineiros, que atendia todos os funcionários das usinas , com muita qualidade. Prá nós , era um hotel 5 estrelas, chiquérrimo e lindo.
Chegando lá , Murilo se encarregou da parte burocrática, enquanto Luiza foi levada às pressas para os preparativos da cirurgia. Mamãe e eu ficamos que nem duas tontas, sem saber de nada e esperando notícias que nunca vinham. Depois de uma eternidade , um médico veio conversar conosco e falou que seria uma cirurgia de emergência e que tudo seria feito para um bom resultado. Tranquilizamos mamãe e a acomodamos em um apartamento que foi reservado para a paciente. A enfermeira nos informou que poderíamos assistir a cirurgia no anfiteatro no andar de cima do centro cirúrgico. Como era um hospital escola tinha esse detalhe. Murilo e eu assistimos tudo através do vidro. Tremíamos mais que vara verde !
A cirurgia transcorreu muito bem e Luiza foi levada para uma semi UTI. O médico conversou comigo e Murilo e disse que tudo foi feito, mas que ela corria risco. Se conseguisse passar aquela noite sem problemas poderia escapar. Ficamos apavorados, não falamos nada prá mamãe e passamos a noite acordados junto de Luiza ,observando cada suspiro que ela dava. Quando o dia amanheceu, sem intercorrências pudemos relaxar e aí foi só esperar a recuperação. Ela foi para o quarto e logo estava tagarelando e querendo sair da cama.Ela falou tanto que ficou cheia de gases e a única prejudicada fui “ euzinha “ que dormia na cama embaixo da sua . Acordei com um ventinho no meu rosto e quase me matei quando descobri que era a sonda dos gases...
A única coisa ruim foi a cicatriz, que mais parecia uma lagarta e que ela odiou a vida toda. O resto , a “maguinha” tirou de letra e em menos de um mês já estava no colégio dando trabalho porque não parava quieta.
De tudo fica a noção de responsabilidade que Murilo (17 anos ) e eu ( 15 anos) tínhamos. A proteção que dávamos a mamãe , por entendermos que era uma pessoa frágil e emotiva, resguardando-a e assumindo tudo sozinhos. Papai não pôde ir por causa do trabalho,Carlos também não, Eduardo era mais novo e assim tínhamos que enfrentar certas dificuldades , apesar da pouca idade. Só hoje, entendo o quanto nos enganamos em relação a Dona Graça. Ela foi uma mulher muito forte e de muita fibra. Aguentar seis pestinhas e todos os problemas que demos, não é prá qualquer uma . Ela só era uma chorona e uma típica mulher da sua época. Aceitava a sua condição de esposa submissa e assim conseguiu que vivêssemos em perfeita harmonia.
Sinto tudo tão perto de mim ainda e isso só aumenta as minhas saudades de mamãe, de papai, de Luiza e de Carlos. Peço todo dia a Deus que os ampare e lhes dê muita , muita LUZ !!!
Graça, abril/2012
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